Bibliothek: Uma nova canção de Kurt Weill
7 de novembro de 2017Quando caminho pelo bairro de Berlin-Charlottenburg, há um lugarzinho escondido pelo qual sempre gosto de passar, entre a Kantstrasse e a Fasanenstrasse: o Lotte-Lenya-Bogen, um arco de trilhos de trem ao qual deram o nome da cantora e atriz alemã Lotte Lenya.
Os aficionados do trabalho musical de Kurt Weill reconhecem o nome imediatamente: Lenya foi casada com ele, e, mais importante, doou sua voz a algumas das canções mais conhecidas do compositor alemão, como Seeräuber Jenny e outras da peça Die Dreigroschenoper (A Ópera dos Três Vinténs, 1928), escrita com Bertolt Brecht.
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Esses três nomes: Lenya, Weill e Brecht evocam imediatamente a Berlim da República de Weimar retratada em tantos trabalhos alemães e estrangeiros. Não é sob um desses arcos de trilhos que a personagem Sally Bowles, interpretada por Liza Minnelli, solta um grito na filmagem de 1972 de Cabaret, dirigido por Bob Fosse?
Os aficionados da música de Weill tiveram uma boa surpresa esta semana. Como noticiado pela Fundação Kurt Weill para Música, de Nova York, e em jornais alemães e americanos, o acaso levou um estudioso da obra do alemão a descobrir a partitura de uma nova canção do compositor na biblioteca da Freie Universität de Berlim. Intitulada Lied vom weissen Käse (Canção do Queijo Branco), teria sido escrita para Lenya, que chegaria a cantá-la em um evento no teatro Volksbühne.
A atriz havia tentado reencontrar informações sobre a canção, sem sucesso. Com a fuga de Weill em 1933, assim como tantos outros artistas judeus, acreditava-se que a canção nunca fosse recuperada. Lenya teria declarado: "Estará perdida em algum porão, como tantas outras coisas."
É entusiasmante pensar que novos trabalhos de artistas do entreguerras ainda possam ser encontrados em pleno século 21. A última grande descoberta de obras de Weill aconteceu em 1983, quando a cunhada do compositor descobriu várias peças do começo de sua carreira em um baú.
A canção refere-se a um curandeiro muito famoso na República de Weimar, Joseph Weissenberg (1855-1941), que usava, entre outras coisas, queijos para curar as pessoas e teve um grande número de seguidores. Em seu consultório na Gleimstrasse, em Prenzlauer Berg, chegou a tratar 50 pacientes por dia.
Na canção, uma jovem cega, interpretada por Lenya, é tratada pelo curandeiro mas não volta a enxergar. Ao fim da canção, ela medita se não seria melhor que todos fossem cegos, para não ver as atrocidades que acontecem no mundo. A canção é de 1931. Não foi justamente cegueira que acometeu a população alemã apenas um par de anos depois? Ou a cegueira se refere a toda a parcela da população que afirmou mais tarde não ter visto as atrocidades nazistas?
Na coluna Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.
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