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Consciência negra e outras formas de trabalho no Brasil

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
20 de novembro de 2024

É preciso lembrar o caráter propositivo que a consciência negra teve na história brasileira no que diz respeito ao trabalho. E a proposta de Erika Hilton sobre fim da escala 6x1 está calcada nessa luta.

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O Lavrador de Café", de 1939, uma das obras mais conhecidas de Portinari
O Lavrador de Café", de 1939, uma das obras mais conhecidas de PortinariFoto: Sao Paulo Museum of Art/picture alliance

O 20 de novembro entrou para a história como o dia da morte de Zumbi dos Palmares. Considerado o maior líder daquele que foi o maior quilombo das Américas, Zumbi liderou centenas de homens e mulheres que se recusaram a viver sob um sistema escravista organizado pela pertença racial de sujeitos que, dentro da lógica colonial, deveriam estar dominados e subjugados por uma elite branca.  

Deste modo, o que Zumbi e os demais palmarinos realizaram em mais de 100 anos (Palmares foi um quilombo que existiu por mais de um século), foi uma façanha e tanto.

Não só porque aqueles quilombolas se atreveram a fugir de seus proprietários e organizar uma resistência armada contra sua reescravização. Mas também porque os palmarinos (como tantos outros quilombolas) foram os construtores de uma complexa organização social, que estudos mais recentes têm comparado a alguns Estados africanos do século 18.

Dito de outra forma: Palmares teve a ousadia de resistir, mas também de propor uma nova forma de vida, centrada em experiências sociais e políticas que não tinham a Europa como modelo, e que se recusava a ceder à exploração sistêmica dos trabalhadores escravizados. 

E talvez essa seja uma das maiores belezas em fazer do assassinato de Zumbi o Dia da Consciência Negra no Brasil – que, desde 2023, finalmente se tornou feriado nacional. Lembrar o caráter propositivo que a consciência negra teve e tem ao longo da história brasileira, sobretudo no que diz respeito ao trabalho.

Exemplos não faltam.

Outras revoltas

Em 1789, quase 100 anos depois da morte de Zumbi e do desmantelamento de Palmares, um grupo de escravizados do Engenho de Santana, localizado em Ilhéus (sul da Bahia) fez uma insurreição.

Ali, não era o sistema escravista que estava em questão. O que aqueles homens e mulheres queriam, eram melhorias nas suas condições de vida. E para não deixar dúvida quanto suas exigências, eles redigiram um tratado (na minha opinião, um dos mais importantes da nossa história), no qual ressignificavam a moralidade da escravidão.

Novamente, é preciso pontuar que aqueles escravizados "não queriam guerra”, na medida em que não estavam questionando abertamente o sistema escravista. No entanto, quando o tratado foi encaminhado para o proprietário, os escravizados insurretos já haviam matado um dos capatazes, deixando bem claro que eles não estavam para brincadeira.

Aqueles homens e mulheres registraram a ousadia de propor uma nova escala moral do trabalho escravo, na qual eles teriam direito a mais dias de folga, para trabalharem em suas roças próprias (principal fonte de alimento fresco desses escravizados), além de quererem a garantia do "costume” de poderem festejam em dias específicos do ano. Eram escravizados dizendo como achavam que a escravidão deveria ser. Uma ousadia e tanto, naquele e em qualquer outro tempo.

Em um dos seus belos livros, o historiador João José Reis examinou a greve geral que acometeu a cidade de Salvador no ano de 1857. Durante um dia inteiro, trabalhadores negros (escravizados livres e libertos) que atuavam como carregadores de cadeiras se recusaram a trabalhar, deixando boa parte da elite soteropolitana na mão, ou melhor, a pé. A história é muito mais complexa (como sempre é), e vale a leitura da complexa análise de João Reis.

Mas o que interessa pontuar aqui é, uma vez mais a ousadia em projetar outras possibilidades de mundo, e de relações de trabalho, a partir da experiência e da consciência negra.

Essa experiência e consciência negra esteve presente e fortemente atuante nas lutas abolicionistas e nas inúmeras formas de organização e associação que a população negra criou quando a Abolição foi assinada (1888) e, logo depois, quando o Brasil se transformou numa República (1889) que se desejava branca.

Nomes como, Chico da Matilde, João Cândido, Laudelina de Campos Melo se juntaram aos milhares de trabalhadores negros que, desse lugar de trabalhadores negros, disputaram outras formas de organizar e de se relacionar com o trabalho. Uma disputa que nem sempre saiu vitoriosa, ou então que precisou esperar muito tempo para colher seus louros. Mas uma disputa que beneficiava a todos, não só a população negra.

A luta por melhores condições continua

Tudo isso para dizer que a recente proposta da deputada federal Erika Hilton (uma mulher negra) está calcada numa longa história da luta dos trabalhadores brasileiros, e da própria evolução da consciência negra no Brasil.

A PEC proposta pela deputada prevê a redução da escala de trabalho 6X1, limitando o horário de trabalho para 36 horas semanais.

O que está em jogo é a ampliação dos direitos trabalhistas (o que não é pouco), mas também uma nova forma de se relacionar com o trabalho. A redução legal da escala de trabalho provavelmente garantirá mais tempo de descanso e lazer, diminuindo assim o estresse, a ansiedade e a epidemia de burnout e outras doenças de saúde mental que vem acometendo a população brasileira.

Junto a isso, a necessidade em manter o produtivismo do mundo capitalista (algo que também deve ser revisitado), obrigará a contratação de novos trabalhadores, diminuindo assim a taxa de desemprego no país. 

Podemos trabalhar menos e trabalhar melhor. Todos saem ganhando: trabalhadores mais saudáveis, SUS menos assoberbado, desempregados, que poderão ter mais chances de se recolocar no mercado de trabalho. Até mesmo a classe patronal tem a ganhar com essa medida, afinal ela deveria ser a primeira a querer o bem-estar e a saúde de seus funcionários. 

Há outras formas de trabalhar e ser trabalhador no Brasil. E há séculos, a população negra vem demonstrando isso. Que possamos aprender mais com a consciência negra.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.